Crítica | O Corcunda de Notre Dame (1996)

24/06/2018

Atenção: a crítica possui grandes spoilers sobre a trama! Cuidado!

A obra literária de Victor Hugo lançada originalmente no ano de 1831 é de conhecimento e aclamação de vários. E nem é para menos. Victor Hugo criou uma fantástica obra que consegue emocionar todos que a leem com personagens bem desenvolvidos e uma história cativante. Dos anos de 1989 a 2000, os estúdios da Disney passaram por um momento de "renascimento" onde elas voltaram a lançar filmes que foram enormes sucessos de público e crítica, conseguindo sair da série de filmes que foram recebidos sem muita empolgação. A Pequena Sereia, A Bela e A Fera, Rei Leão e Tarzan são alguns dos exemplos de filmes lançados durante esse tempo. E no ano de 1996, foi que a Disney lançou uma adaptação da tão famosa obra de Hugo, O Corcunda de Notre Dame, uma de suas animações mais densas e pesadas.

O filme começa com a eletrizante música The Bells of Notre Dame onde o espectador vê toda a cidade de Paris acordando para um novo dia de trabalho enquanto o cigano Clopin chama todas as crianças ali presentes para ouvir uma história que envolve um homem e monstro. Somos repentinamente transportados para uma Paris de anos atrás onde acompanhamos três ciganos, dois homens e uma mulher, que desejam entrar anonimamente na cidade, com a cigana levando uma criança recém-nascida enrolada, quando são impedidos pelo Ministro da Justiça Claude Frollo que abomina ciganos e pensa que a mulher está levando coisas roubadas.

A cigana consegue fugir dos guardas de Frollo, mas o ministro a persegue (onde Alan Menken coloca de forma genial na trilha o Dies Irae simbolizando o julgamento que os ciganos receberão pelo impiedoso juiz) até ela chegar à Catedral de Notre Dame e pedir Santuário. Antes da ajuda chegar, Frollo tenta puxar o bebê de suas mãos e chuta cigana fazendo com que ela quebre seu pescoço nos degraus da Catedral. Quando Frollo descobre que na verdade o bebê é cheio de deformações faciais pensa que ele é um monstro e pretende o jogar no poço até que é impedido pelo Bispo que fica horrorizado pela matança que aconteceu na Sagrada Catedral e diz que Frollo terá que mudar suas ações agora, começando por salvar a vida do bebê, se não quiser ser condenado eternamente (todo o discurso do Bispo é acompanhado por imagens aterrorizantes da Catedral com suas imagens evocando olhares punitivos enquanto a trilha sonora canta Kyrie Eleison!). Com medo do destino eterno de sua alma, o juiz aceita o julgamento do Bispo, com a condição de que o garoto viva na Catedral isolado de todos. A história é finalizada e Clopin lança a charada que irá acompanhar o filme inteiro (quem é o homem e quem é o monstro?) antes de finalizar de forma magistral a música. A Disney cria uma de suas aberturas mais impactantes, abordando temas como o Julgamento Eterno e infanticídio, já fisgando toda a sua atenção para a obra.

O garoto, que recebe o nome de Quasímodo (meio formado), cresce isolado de todos e faz os seus amigos imaginários que são as três gárgulas falantes: Victor, Hugo e Laverne; com os dois primeiros sendo uma óbvia referência ao autor da obra literária. Eles se destacam principalmente na parte mais cômica do filme, afinal não esqueçamos que ainda estamos falando de um filme da Disney, e a última serve quase como uma mãe para Quasímodo, aconselhando-o (embora ainda tenha momentos hilários expulsando os pássaros que pousam nela). Um dos sonhos do Corcunda é ir para o famoso Festivais dos Tolos que é uma das maiores festas populares de Paris no filme. As gárgulas clamam para ele ir para a fora e conhecer outras pessoas, porém Frollo sempre o manda ficar na Catedral dizendo que o mundo é hostil e que ele só ia encontrar pessoas sem coração como a sua mãe, já que Frollo mente para Quasímodo dizendo que a sua mãe o abandonou de forma impiedosa. OCcorcunda finalmente decide ir e chegando lá conhece a belíssima cigana Esmeralda que dança com o seu bode Djali na frente de uma multidão no Festival, dentre eles o Capitão Phoebus que acabou de voltar para Paris após servir em uma batalha.

Em todo do Festival acontece a famosa coroação do Rei dos Tolos, onde plebeus se fantasiam com a máscara mais feia que tiverem e o mais feio é coroado. Os cidadãos confundem a face deformada de Quasímodo com uma máscara e ele é coroado como o vencedor de concurso e quando descobrem que não era uma máscara o ridicularizam em praça pública jogando alimentos nele. O sineiro pede ajuda ao seu mestre, mas ele, como uma forma de disciplinar o criado, ignora o pedido de apelo. Finalmente, a cigana para o ato de crueldade salvando o Corcunda e provocando Frollo dizendo que ele não oferece justiça, principalmente pela opressão que ele causa aos ciganos. Por causa esse ato, Esmeralda é obrigada a se refugiar na Catedral pedindo Santuário ou será executada. E então, a história se desenrola, envolvendo-nos em cada aspecto dos personagens principais: Quasímodo, Esmeralda e Frollo.

                   Quasímodo                          

Ev'ry day they shout and scold and go about their lives
Heedless of the gift it is to be them 

Quasímodo nos encanta desde a primeira cena. Sua meiguice com os animais, sua inocência e seu desejo de conhecer o mundo (representado pela belíssima canção Out There), mas também o seu medo de ser rejeitado por causa de sua aparência. Ele é o personagem que ensina ao espectador a não julgar pelas aparências já que ele é, de longe, o personagem mais adorável do filme. Vemos também uma grande evolução daquele que apenas abaixava a cabeça para qualquer ordem que lhe foi dada e que enfim começa a se impor contra as ordens de Frollo ou de outros. 

Seu amor não correspondido por Esmeralda é um dos aspectos mais bem trabalhados da película, principalmente quando o personagem expressa todos os seus sentimentos através da música Heaven`s Light. Após tantos anos vendo os casais perfeitos de Paris através da torre do relógio, ele sente aquele sentimento tão invejado, o amor. Esmeralda, que é metaforicamente referenciada como um anjo, é a primeira que demonstra um real sentimento de afeto ao personagem. A dublagem de Tom Hulce é perfeita, casando perfeitamente com o personagem.

                     Esmeralda

Esmeralda não é aquela princesa da Disney que muitos já estão acostumados. Seu maior sonho não é casar com um príncipe (sendo válido ressaltar que assim como no livro, ela se apaixona por Phobeus). Ela se preocupa antes de tudo com o seu povo que todos os dias é perseguido por Frollo. Como bem representado em God Help the Outcats, ela não ora a Deus pedindo Graças e glória terrena, mas intercede para os outros menos sortudos que ela. A voz de Demi Moore é o acréscimo perfeito a personagem. Enquanto Quasímodo nos ensina a não julgar pelas aparências, Esmeralda nos ensina a não julgar os outros por quaisquer posições sociais.

Para os dois personagens principais, Esmeralda representa algo diferente: o amor e o pecado. Quasímodo a enxerga como a única diferente de toda Paris. A que consegue ver através das deformações de sua face. Já Frollo a vê como um objeto de perdição, que o tira de seu caminho "justo". Desde o dia em que ela dança na frente dele, ele fica fanático por ela ao ponto de querer que ela fique com ele ou queime no Inferno.

                           Frollo

Temos aqui o vilão mais complexo e temível de toda a Disney. Claude Frollo não se importa como ele irá realizar o seu objetivo nem em quantas Leis Divinas ele terá que quebrar para atender unicamente a sua vontade. Seu senso moral sempre foi, em sua visão deturpada, bem definido: os ciganos são o problema de Paris e ele, como um juiz de autoridade quase divina, deve purificar a cidade de sua presença. E então, o seu orgulho, o pecado de Lúcifer, leva-o a outro pecado: a luxúria. Seu desejo quase que maníaco por Esmeralda é a causa de sua completa perdição, onde ele passa a queimar toda Paris atrás da cigana. A dublagem de Tony Jay reina de forma absoluta. Grossa, forte e imponente assim como o vilão.

E como todo vilão da Disney possui a sua música, Frollo possui a melhor de todas. Hellfire é a canção mais "adulta" de todo o estúdio onde o personagem libera toda a sua angústia. Dominado pelo orgulho, ele clama ajuda para a Virgem Maria, mas ao contrário de um pecador necessitado que se humilha, ele antes se exalta, afirmando ser mais virtuoso que o resto da população de Paris. Depois segue-se o seu conflito mental onde vários sacerdotes encapuzados cantam Mea Culpa enquanto ele tenta se inocentar do seu pecado, colocando a culpa na cigana e na fragilidade humana perante a tentação. Sua loucura avança cada vez mais ao ponto de ele clamar para a Virgem destruir a pecadora e fazer ela queimar ou deixar com que ela seja toda sua. E enfim, convicto de seu ultimato, ele pede para que Deus tenha piedade tanto dela quanto dele. Neste momento, Frollo enxerga que ele não luta por Deus ou pela Igreja, mas sim por suas próprias ideologias e convicções. Ele sabe que será condenado aos olhos de Deus, mas principalmente por causa de seu orgulho, ele não desiste. Para quem quiser ver, aqui está o vídeo da música:

A animação é outro destaque a se louvar principalmente toda a criação da Catedral. Da sua porta até a torre dos sinos. No livro, Victor Hugo descreve Notre Dame com a maior quantidade de detalhes já imaginado e o tratamento dado pelo filme não podia ser diferente. Sentimos como se a Igreja fosse uma das personagens do filme mesmo sem ela dizer uma única fala (já falei aqui da cena no começo onde aparecem as imagens religiosas). O 3D é usado de forma magistral assim como a iluminação que realça todos os detalhes da Catedral. Como no fim de God Help the Outcats, a luz Divina resplandece sobre todo ambiente:

A trilha sonora de Alan Menken é um dos maiores acertos da produção. Não há músicas contagiantes aqui que ficam presas na cabeça do espectador, mas sim músicas emocionantes com algumas delas envolvendo coros religiosos. A já citada Hellfire, Out There, The Bells of Notre Dame e God Help The Outcats (que já foram abordadas separadamente) são os maiores destaques de uma trilha acima da média. Os coros em Latim, entoando vários hinos litúrgicos como o Kyrie Eleison, Dies Irae e Confutatis, adequam-se as cenas em que foram inseridas.

O clímax do filme também é de tirar o fôlego. A população de Paris liderada por Phoebeus indo de encontro ao exército de Frollo, enquanto este tenta adentrar em Notre Dame para matar Esmeralda que foi salva da fogueira por Quasímodo. A luta às vezes é engraçada, outras vezes é eletrizante, tudo fluindo de uma forma que o espectador fique de olho toda a cena. E no fim, quando a gárgula "cospe" lava do alto da Catedral é o onde a luta atinge o seu clímax. Mas o terceiro ato não acaba aí, reservando um último conflito entre Quasímodo e Frollo. Este finalmente revela o que realmente aconteceu com a mãe do Corcunda anos atrás e parte numa investida contra ele e Esmeralda. No fim da luta, sobra Quasímodo apoiado numa gárgula quase caindo em uma mão (com Esmeralda tentando ergue-lo para a superfície) e segurando Frollo em outra. Este, aproveitando-se da bondade do Corcunda, ergue-se sobre a gárgula ao lado e de pé proclama de forma impiedosa, sádica, irônica, com sua cara obscura, olhos cor de fogo e quase como uma premonição: And He shall smite the wicked and plunge them in the fiery pit! Aqui Frollo se vê de forma definitiva como Deus, mas então sua fragilidade é demonstrada. Sua gárgula racha, ele se desequilibra e, imaginando a cara de um demônio o arrastando para Inferno no lugar da gárgula, Frollo cai em um poço de lava com o seu destino eterno selado.

"O Corcunda de Notre Dame" é uma animação louvável e com toda a certeza uma das melhores já feitas pela Disney, porém muitas vezes é rebaixada de forma injusta. Talvez por ser sombria demais para crianças pequenas, mas ainda assim é um descaso enorme. Trata-se de um filme com uma mensagem principal comovente (sobre como a beleza não se localiza apenas na aparência) e se destacando em todos os seus aspectos. Após já terem visto a obra, desejaria que respondessem o seguinte enigma feito por Clopin no fim do filme: "O que faz um homem e o que faz um monstro?". 

  • Título Original: The Hunchback of Notre Dame - 91 min
  • Direção: Gary Trousdale, Kirk Wise 
  • Roteiro: Tab Murphy, Irene Mecchi, Bob Tzudiker, Noni White, Jonathan Roberts
  • Elenco: Tom Hulce, Jason Alexander, Demi Moore, Tony Jay, Paul Kandel, Kevin Kline 

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